Wicked Games: viens que je te griffe

Acordou de manhã com a luminosidade de um dia de sol enchendo o quarto branco; sorriu. Virou para o outro lado, aninhou-se novamente sob as cobertas clarinhas como se pudesse ficar ali naquele sonho de nuvem até sentir que o corpo todo havia despertado para, de fato, falar, andar e desprender-se (um pouco, apenas) das memórias deliciosas dos últimos dias. (Se ela soubesse que usei a palavra “desprender-se”, com certeza me corrigiria. A ideia não era essa. As memórias estavam acumulando-se como tinta sob a pele, de onde não sairiam nunca mais. Talvez, um dia, desvaneceriam um pouco ficando mais sutis e enfraquecidas; jamais, porém, apagariam-se definitivamente). Mas, havia motivação para esse leve “desprender-se”: a convicção de que este seria outro dia de amor, transas deliciosas, conversas regadas à risadas e vinho, preparar refeições juntos e depois dormir um pouquinho na rede… – a certeza de que este seria outro dia digno de tornar-se nova memória abrigada com alegria sob a pele.

viens que je te griffe

Vestiu uma calcinha preta e a velha camiseta branca do Velvet Underground com aquela banana do Warhol que adorava. Atravessou o curto corredor até chegar no cômodo que servia de sala, copa e cozinha. Ele já estava de pé, mexendo em alguma coisa apoiado à mesa. Ela abraçou-o por traz e beijou-lhe o pescoço. O desfecho do beijo ia ser uma mordidinha leve mas, antes que tivesse tempo disso, foi jogada para longe num movimento rápido. Antes que qualquer palavra lhe viesse à boca, procurou nos olhos dele uma resposta para aquela situação absurda. Ele olhava para ela fixamente, com uma expressão assustadora, olhos esbugalhados e vermelhos. Sem resposta no olhar e com a crescente dúvida e espanto, ela perguntou “O que diabos…” mas, antes que conseguisse terminar a frase ele empunhou uma arma na direção dela, gritando “Cala a boca, vadia!”. Foi quando ela começou a procurar com os olhos o conhecido pó branco sobre a mesa; enquanto isso sentia seus pensamentos confundirem-se na busca por explicações plausíveis. “Uma alucinação, um pesadelo…” parecia improvável e ainda assim era a única coisa que parecia encaixar-se. Mas o grito dele ecoou fazendo-a dar menos crédito à possibilidade improvisada, “Anda! Anda, idiota!”, indicando o quarto com a mão trêmula que empunhava a arma.

Ela deu três passos de costas e virou-se. Não conseguia vê-lo daquele jeito; e não entender nada era a pior punição em que ela podia pensar naquele momento. Quando chegou ao quarto, viu a cama desarrumada onde passaram juntos as noites das últimas semanas, vivendo amor e amando a pele do outro mais do que tudo; encheu-se de uma falsa coragem para virar-se de novo, olhá-lo nos olhos, respirar fundo e confrontá-lo exigindo que parasse, exigindo uma explicação.

Tão logo virou-se, ouviu o barulho como um estouro e a dor da bala transpassando seu corpo. Instintivamente levou a mão ao ventre: sangue morno encharcava sua camiseta. Por alguns segundos não pensou, não ouviu nada… conseguia apenas olhar para a mão ensanguentada e sentir dor. Quando saiu do transe e ergueu seus olhos em direção aos dele, PÁ!, um novo disparo; agora, mais perto do coração. Ela caiu no chão. O teto branco parecia demandar muita força e, deixou a cabeça pender para o lado. Sentia as lágrimas escorrerem-lhe do rosto, sentia a respiração fazer-se em esforço e intervalos espaçados, sentia – literalmente – a vida esvair-se conforme o sangue deixava seu corpo.

Ele caminhou até o lado dela e parou. Poucos segundos depois, abaixou-se e deixou ao seu lado a arma. Levantou-se; mais três passos largos (desviando do sangue) e pegou de cima do criado mudo o livro de poesias dela. Em voz alta (mas quase num sussurro), leu um trecho de sua poesia favorita. Em silêncio observou-a até que os olhos dela esvaziaram-se de todo brilho e qualquer vestígio de vida. Fez o mesmo percurso para sair do quarto; saiu do apartamento com a mala que estava já preparada ao lado da porta.

***

Várias horas depois ela conseguiu abandonar o chão morno que mal serviu de abrigo ao seu coração quebrado, seu rosto dolorido e molhado, seus pés oscilantes e cansados. Caminhou até a cozinha, abriu a geladeira e tirou uma garrafa de água; bebeu direto do gargalo grandes goles. Recostou-se no balcão e esperou alguns segundos, como que se vendo se a água teria o efeito esperado. Não teve. Abriu o armário e, da prateleira mais alta pegou o Jack Daniel’s que ele tinha deixado. Dois dedos de anestésico no copo, bebeu devagar. Sentou no chão. Encheu o copo de novo e acendeu um cigarro.


Parte do texto foi inspirado por “Viens que je te griffe” do canadense (fofo!) David Giguère. O álbum (Hisser haut) é inteiro lindo e, essa música particularmente é incisiva e instigante. Altamente recomendado!

Não estou completamente satisfeita com a fotografia que ilustra o texto. Se tu tiver uma sugestão melhor, nhaaaai, eu quero! Haha. De qualquer forma, a foto é linda e tá aqui 😉

;*


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Comentários

  1. Avatar de guga azevedo

    <3 "Vestiu uma calcinha preta e a velha camiseta branca do Velvet Underground com aquela banana do Warhol que adorava." <3

    1. Avatar de lisdelbarco

      Haha, tem certas combinações que são infalíveis.

    1. Avatar de lisdelbarco

      Obrigada, Rapha (: Já que eu adoro seus textos, elogio teu vale bastante por aqui!

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