Estatuto do Nascituro: cristianismo e aborto

A lei do Nascituro é algo que me revolta profundamente. Assim como me revolta que nós, mulheres brasileiras, ainda não temos o direito ao aborto. Tenho certeza que o motivo disso é uma sociedade extremamente machista. E, o meio cristão no qual estou inserida é um grande promotor, incentivador e difusor do pensamento machista. E é a linha de pensamento que, em geral, se ouve nas igrejas que quero questionar. Na verdade, quero propor que ela seja colocada à prova através de algumas perguntas e exemplos.

Um dos argumentos que mais escuto por parte dos cristãos é que o aborto é errado diante de Deus porque é matar; é pecado. Não vejo problema nenhum em se acreditar nisso; cada um acredita no que quiser. O problema é querer aplicar punições baseadas na nossa crença na vida dos outros. Se você, mulher cristã, engravidou e não quer abortar porque acha que é pecado, não aborte. Agora, se não é o caso…. Que a mulher que comete o aborto acerte-se com Deus, certo? . Afinal de contas, não é o que prega-se nas igrejas? Que não existe nenhuma pessoa capaz de nos ajudar (ou atrapalhar) na nossa relação com Deus? Que, por causa de Jesus, temos a oportunidade de ter um relacionamento direto com Deus? Então… A mulher que aborta e Deus – somente ela e Deus – que resolvam a questão.

Ainda nessa linha de raciocínio – que é “errado perante Deus” – gostaria de propor um paralelo. Traição é adultério e, de acordo com a Bíblia, é pecado. Estupro, também pecado e crime – contra Deus e os homens. Se os cristãos acreditam ter o direito (e dever) de tão drasticamente intervir quando alguém peca, por que não castra-se o homem que trai ou que estupra uma mulher? Seria isso trágico demais? Seria isso invasivo demais? Seria ir além do correto aplicar força, lei e imposição sobre o corpo de um indivíduo? Porque é exatamente isso que o aborto propõem. O corpo de uma pessoa é parte essencial de quem ela é e, o poder sobre o próprio corpo reflete muito da dignidade que sentimos ter. Ninguém deveria ter direito sobre o corpo de outra pessoa; o Estado não deveria ter direito sobre o corpo de uma pessoa. O sentimento de “ser inteiro e completo” está absolutamente ligado ao poder que temos sobre nosso próprio corpo e sobre a possibilidade que temos de usá-lo como e para o que queremos. Infligir a continuidade da gravidez à uma mulher que não a deseja significa aprisioná-la dentro do próprio corpo; significa obrigá-la a sentir-se (fisicamente) menos ela – como ela se conhece e quer ser -, significa obrigá-la a sentir dores e mudanças que podem nunca acabar. “Mas ela merece; ninguém mandou engravidar” alguém pode dizer. Mas, se for assim – tão rígido e implacável – não seria o caso de castrar traidores e estupradores? Por que é que os homens podem esperar a justiça de Deus sobre seus erros e, as mulheres, não? Disseram-me já que, se o aborto for legalizado vai virar algo tão banal que todas farão e não deveria ser assim… talvez exatamente como a traição. Talvez não, como o estupro (que apesar de ser crime acontece aos montes). Isso não é argumento suficientemente válido.

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No caso do Estatuto do Nascituro isso tudo é levado a um patamar ainda mais baixo e lamentável. Obrigar uma mulher a carregar um bebê que vai nascer morto, que pode colocar a vida dela em risco ou que é a lembrança de um dos momentos mais trágicos de sua existência (no caso do estupro) e, ainda obrigá-la a ter contato contínuo com o seu agressor é tudo menos cristão. Não há amor nisso. E, para mim, não há (ou, não deveria haver) nada no cristianismo maior que o amor.

É grande prova de amor dar liberdade e escolha. É isso que como mulheres esperamos: liberdade sobre nossos corpos e escolhas. Cristão nenhum precisa concordar ou gostar delas; precisa amar. Ou, como bem colocou Caio Augusto Leite, “não sejam tolos, não falta amor – falta amar“. 

Foto:  http://pinterest.com/pin/46513808623572760/

ps: São diferentes coisas ser a favor do aborto e a favor da opção do aborto. Com este texto trago a minha opinião: sou a favor da opção de aborto e da liberdade de escolha por parte da mulher. Não cabe a mim dizer se sou à favor ou contra o aborto de quem quer que seja.


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