Inatingível

Primeiro chegaram as obras. Várias. Lindas.

Depois chegou meu chefe: – Alice, dá uma olhada nessas obras e no texto do catálogo. Se tiver dúvidas, os artistas chegam amanhã e você pode conversar com eles antes da coletiva de imprensa.

E aí chegaram os artistas. Daquele jeito, né? Com pinta de artista mas, cada qual a seu modo.

Ele chegou sério, quieto. Tinha uma postura engraçada, solta… como se estivesse sempre deslizando devagar. Olhava incisivamente para as pessoas, paredes, pinturas. Eu não sabia dizer bem o que tinha por traz daquele olhar castanho que, volta e meia, se abria num sorriso que era pura doçura ao explicar alguma coisa ou atender ao telefone. Era absurdamente lacônico e sutil.

Nunca foi tão difícil manter a concentração ao conversar com um artista e perguntar detalhes específicos de sua obra, conceito e processo de produção. Eu começava ouvindo, acompanhando… de repente, o som tinha se esvaído e eu só conseguia vê-lo falando, falando, falando de um jeito hipnotizador. Só conseguia vê-lo.

Passou a coletiva de imprensa. Passou a vernissage. E eu lá, sem conseguir tirar os olhos dele, corando cada vez que ele olhava para mim.

Horas depois, fui comemorar o sucesso da abertura da exposição com alguns amigos num bar ali perto. O sangue embebido em álcool e uma ideia que na hora parecia genial: ir ao hotel dele e dizer que eu estava sentindo. Ele tinha que saber; ele ia embora no dia seguinte. Depois (já no dia seguinte) percebi que eu estava pedindo para ser mal interpretada! É claro que ele iria pensar tudo menos que eu sou uma romântica incurável! É claro que ele iria pensar que tinha segundas intenções… mas, não. Por dentro eu era uma adolescente de coração mole e eu estava mesmo indo lá simplesmente para dizer que eu achava ele incrível e que estava apaixonada.

Mas há sorte, há um santo protetor dos bêbados e apaixonados, há esperança, há Deus!

Cheguei no hotel, pedi ao recepcionista que chamasse ele. O gerente – um senhor caricato nos seus cinquenta anos, de bigode e sorriso amável – muito educadamente disse que ele não estava lá. Eu insisti que sim, ele insistiu que não. Isso durante alguns minutos que, na minha percepção alcoolizada pareceram meia hora. Finalmente, dei-me por vencida. Fui para casa.

Acordei no dia seguinte com uma sensação esquisita: medo e alívio do que não aconteceu, misturados.

– Ei! Oi! Eu disse, sorrindo, surpresa. Não esperava encontrá-lo em Buenos Aires.

Estava chovendo, frio. As árvores, quase sem folhas, davam à cidade um ar lacrimal. As paredes tão vermelhas de tijolos à vista e os cachorros tristes vagando sem direção… tudo parecia frio e sem espírito. À margem do rio de La Plata o ar úmido e gélido castigava os pulmões que, eram ainda mais castigados com o cigarro – tentativa mútua de aquecer-se. Diante daquela situação tão inusitada, depois das perguntas rotineiras sobre a vida, contei-lhe sobre o crush que tive por ele meses atrás. Ele sorriu de um jeito triste. Depois de um silêncio desconcertante, confessou: “você me dava medo. Perto de você eu tinha medo de mim”. Explicou que na época ele estava com uma menina, que sabia que eu estava interessada nele – e o assustava a urgência de me corresponder apesar de amá-la. Parecia confuso (como se ainda não tivesse entendido bem o que tinha sentido e tentava me explicar).

Foi quando entendi o sorriso triste: ele ainda estava com ela. O silêncio tinha voltado a nos envolver. Senti novamente seu olhar incisivo sobre mim; senti o sorriso doce e, por fim, o beijo. Depois disso, depois de um hiato – um nada de tempo e espaço – senti as lágrimas quentes, a chuva gelada e o vazio ao vê-lo caminhar rumo à distância*.

moi et toi

*O trecho final faz intencional referência ao belíssimo “O caminho para a distância“, do poetinha, Vinícius de Moraes.

Foto: Jarek Puczel – Lovers 1
The Artist Is Phoda, haha (;

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