Ninguém mata o suicida

Emendou três anos sem tirar férias. Nunca dava. E almoçar sentado não era sempre. E quando dava, era tão rápido que a comida parecia sempre ter o mesmo gosto (independente do que fosse) e parecia sempre cair pesada no estômago, fazendo os pensamentos ficarem ainda mais truncados. Trabalhava há dez anos na mesma empresa e sentia-se estagnado há nove. Sempre batia as metas, mas sempre na tampa, no quase. Já não tinha certeza do quanto aquilo era bom… Se ficasse bem acima da média, se fosse um dos mais produtivos e eficientes talvez fosse promovido, recebesse aumento, tiraria férias, conheceria uma mulher interessante, casaria, compraria uma casa e um cachorro, teria dois filhos. Por outro lado, se nunca conseguisse bater as metas, talvez fosse demitido. Aí talvez aceitaria com relutância o emprego que a amiga da mãe conseguiu junto à Associação na qual ela trabalha. Lá, talvez, ganharia menos, mas teria menos gastos também já que poderia morar na casinha construída nos fundos da Associação. Trabalharia menos e comeria mais; engordaria um pouco e dormiria mais. Poderia assistir aos jogos no estádio. Talvez até adotasse um gato (que é um companheiro bem independente e combina bem com quem, como ele, não pode garantir muita segurança). Mas não. Ele sempre batia as metas. Sempre engolia sapo. Sempre queria morrer no começo do mês… Até hoje. Olhou pra água há metros de distância durante muito tempo. Sorriu um sorriso ambíguo, cheio de tristeza e de alívio. Depois, subiu no parapeito da ponte e pulou antes mesmo de equilibrar-se, antes que qualquer outra ideia lhe passasse pela cabeça. Pulou antes que pudessem agarrá-lo, antes que qualquer pessoa pudesse gritar. Pulou e caiu livre.

 


Não dorme há três dias. Ao menos, não mais do que duas horas seguidas. Não sai do quarto há três dias. Ao menos, não mais do que até o banheiro ou até a sacada. Já perdeu a conta de quantas carteiras de cigarro fumou. A julgar pelas bitucas que enchem os dois cinzeiros e as muitas xícaras-cinzeiro-improvisado, milhares. Já bebeu muito café, todo  o estoque de cerveja, meia garrafa de vodca, uma garrafa de vinho barato. Não lembra de quando comeu pela última vez. Não lembra quando chorou pela última vez apesar de ter chorado copiosamente algumas vezes nos últimos dias.  Acredita que nem os cigarros, nem a bebida e nem a ausência de sono o fizeram menos lúcido – está enganado. Está tremendo, fedendo, esquecendo palavras – todas menos duas: o nome dela, o adeus dela -, confundindo imagens – lembranças, sonhos, delírios -, negligenciando sons – o telefone tocando, a batida na porta. Está cansado. Abre o potinho, pega um punhado de pílulas para dormir, toma duas. Acha ridículo. Toma mais dez. Derruba mais algumas na mão em concha, pronto para tomar mais – aquilo dá um certo prazer, estranho. Quando leva a mão à boca, dorme. Tudo é transe, leveza, esquecimento. “Adeus”.

 


Trinta e sete anos, virgem. Gay. Só se assumiu um ano atrás quando foi expulso do seminário. Ainda usava o crucifixo de madeira no pescoço e ainda rezava o Pai Nosso todos os dias. O fim da prece era sempre marcado pela tentativa de perdoar a todos e chorava de raiva, de ódio, de frustração – ainda não aceitava o fato de não o aceitarem, o fato de não se aceitar, o fato de não aceitar eles, aquele bando de gente feito de ignorância e incoerência. Não bebia, não fumava, não cheirava. De vez em quando, se cortava. Mas foram poucas vezes. Aquilo fazia ele se sentir ridículo. Um homem de quase quarenta anos agindo feito um adolescente… Resolveu que não aguentava mais nada daquilo e apesar dos conflitos de amor e ódio, resolveu que queria encontrar o Senhor – que Ele entenderia. Só que não tinha coragem de se matar… assim, tradicionalmente. Cortar os pulsos, dar um tiro na cabeça (Não consegue nem arrumar um baseado para experimentar, vai arrumar uma arma onde?! pensava), pular de um prédio, tudo inviável. Começou a abrir todas as portas de todos os armários da casa procurando por uma ideia, uma solução. Na dispensa riu diante da ironia: “Diabo Verde”. Ah, mas é tu mesmo! E virou uns vários goles antes de pensar de novo. O que aconteceu com aquele corpo eu não consigo nem descrever direito. Talvez tenha mesmo sido algum tipo de possessão antes do espírito sair do corpo, porque cada músculo, veia, nervo, osso, membro – cada um esticou-se, dobrou, soltou, levou choque; tudo era convulsão, a vida girando, o teto caindo, a mãe gritando, o chicote batendo, a tremedeira, a dor, o gosto de sangue. Sem controle algum de mais nada, rolou escada à baixo e encontrou o chão. De lá, daquela versão contida e disfarçada de sarjeta, o corpo todo torto e quebrado, a alma livre, viu o seu Senhor sorrindo boas-vindas.

Os três textos foram inspirados pela frase título (que ouvi essa semana no trabalho e achei maravilhosa) e pela série The Suicidist (1973-2007) de Sam Samore 😉


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