Acordou, sentou na cama e, num reflexo natural, esfregou os olhos. Uma sensação de pó entre os olhos e os dedos a surpreendeu e logo pensou “merda, conjuntivite”. Entretanto, surpresa maior foi ver sobre seu colo, sobre as cobertas, um monte de pó – parecido com serragem. Passou de leve dois dedos sobre o rosto, devagar. Ao verificar, mais desse pó. Certo que não era maquiagem… era pó… como pele esvaecendo. Esfregou as mãos – como quando tenta aquecê-las – e, pó, pó, pó sobre a coberta, caindo como areia irrefreável na ampulheta que acaba de ser virada upside down.
Levantou correndo, botou uma roupa qualquer e correu para o hospital. Pediu para falar com algum dermatologista mas, na falta, qualquer médico serviria. Um dermatologista a atendeu, de início meio desinteressado. Ela explicou o que aconteceu, ele não estava dando muito crédito quando ela repetiu a ação: esfregou as mãos com o cuidado de o fazer sobre a mesa dele para que ele visse todo o pó que delas caíam.
Os olhos dele saltaram. Alguns segundos de silêncio. Balbuciou “eu não sei o que é. Espera” e começou a discar e a falar no telefone mais rápido do que ela quando entrou no consultório. Ela logo entendeu que ele estava conversando com colegas médicos, que haveria na próxima semana um seminário (ou algo do gênero) de medicina e ele queria levá-la consigo para que pudessem “estudar, descobrir” ou especular o que era aquilo. Antes que ele desligasse o telefone, ela saiu.
Passou numa papelaria e comprou uma série de cartolinas brancas. Voltou ao apartamento pequeno, esticou as folhas brancas e grudou-as umas às outras e também ao chão com fita adesiva. Tirou toda a roupa e pôs-se no meio do seu tapete branco. Ficou um tempo parada, em silêncio, pensando. Começou a chorar. E começou as mãos sobre os braços, sobre as pernas, todo o dorso, os ombros… A lágrima ditava o ritmo: por vezes, mais calma, convicta e triste, simplesmente passava a mão sobre o corpo – quase como quando passava creme, suavemente. De repente, chorava muito, confusa e um pouco desesperada e, aí, esfregava raivosamente as mãos, arranhando o pescoço e as costas, querendo acabar logo com aquele estranho ritual.
Depois de ver no chão uma considerável quantidade desse pó, vestiu-se sentindo-se muito, muito fraca. Botou água para ferver. Cuidadosamente pegou aquele pozinho e o dispôs em quantidades mais ou menos parecidas em potinhos de vidro pequenos, muito bonitinhos, que tinha comprado tempos atrás e nem sabia ao certo pra quê. A água ferveu; despejou-a dentro da caneca favorita e esperou a infusão de lichia ficar pronta. Enquanto isso, acomodou-se à mesa. Em cinco pequenos pedaços de papel escreveu diferentes nomes; com fio de lã azul amarrou cada um a um dos vidrinhos. Escreveu uma carta enquanto bebia seu chá.
Por telefone, chamou um táxi. Sentia muito frio e cansaço. Pediu que ele parasse no primeiro posto que tivesse uma daquelas ATM de banco vinte e quatro horas. Quando pararam no posto, ele perguntou o destino , ao que ela respondeu simplesmente “Praia Brava”. Ela saiu do carro, foi até a loja de conveniências, comprou dois maços de cigarro e uma garrafa de vinho; tirou dinheiro na ATM e entrou no carro. O motorista, preocupado, disse que a viagem sairia muito cara. Ela mostrou a ele um pequeno maço de dinheiro. Ele ligou o carro e começou a dirigir. Cantarolava a música do rádio… e, perguntou “por que a Brava?”. Ela sorriu, “porque tem o mar e porque é a praia que eu conheço que mais venta.”. Ele, como todo bom taxista, tentou emendar conversa: “é… lá venta pra caralho! Dizem até que muito surfista já morreu lá, sabia?”. Mas ela sorriu e ele percebeu que não haveria muito diálogo. Voltou a cantarolar…
Chegaram. Ela pagou. Ele disse que ela se cuidasse de um jeito muito gentil. Ela sentou-se na areia, ficou olhando o mar, acendeu um cigarro. Bebeu e fumou sem saber se estava triste ou feliz; deixou o vento lhe castigar.
*
Anna usou a chave reserva que tinha ganhado da amiga, “caso precisasse”. Estava preocupada porque há dias esta não atendia o telefone, não aparecia, nada. O apartamento estava vazio mas, parecia normal – nada fora do lugar. Reparou então nos potinhos sobre a mesa; viu seu nome num deles; viu a carta. Leu-a duas, três, quatro vezes.
Anna, querida,
Imagino que seja você quem vai encontrar esta carta. Torço por isso, ao menos, porque sei que é a única que vai entender seu conteúdo.
Eu sabia que a vida estava me matando – eu te falei isso – mas, não sabia bem como. Sempre achei que seria algo mais trivial tipo, de tanta agonia e tristeza: descobrir-se doente. Mas, a vida estava me desgastando, literalmente. O fogo do sofrimento parece ter passado invisível sobre mim; invisível mas, não sem deixar seus vestígios. Cremada sem morrer, fui me desfazendo sem perceber… até o dia que percebi: hoje. Essa coisa que mais parece loucura tornou-se hoje assustadoramente notável demais. Eu não sei bem o que sentir mas, sei que é impossível fingir que não está acontecendo.
Assim, tentei aceitar e deixar-me ir. Eu já não sabia mesmo como levar, né? Quis simplesmente ir sabendo que disse o que era importante ser dito. Amo você com todo meu coração. E amo cada uma dessas pessoas para quem deixo um pedacinho de mim – amo-as com todas as forças, com tudo o que sou. Você precisa dizer isso a elas, tá? Dizer que levo comigo todas as boas memórias e que minha vida foi linda simplesmente pela presença delas e sua. E que as amo mesmo.
E agora, estou indo para a Praia Brava. Se você encontrar essa carta é porque fiquei lá… desfiz-me no vento, na areia, no mar. Preciso que você dê um jeito de explicar isso para as outras quatro pessoas dos potinhos – o resto delas não importa. Eu sei que a tarefa é difícil; desculpe. Mas, não quero que pensem que sumi, que posso ainda estar sofrendo ou qualquer outra coisa assim porque nada disso é verdade. Eu provavelmente estarei leve de todos os pesos que agora me castigam; descansada. E, estou indo de encontro ao mar! Vou levar vinho e cigarros (não conte esta parte aos meus pais). Vai ser delicioso. Se conseguir, encontre-me lá.
Um grande beijo com amor.
Anna estava furiosa porque, por mais bizarro que fosse, acreditava em cada palavra deixada. Ficou lá sentada, na mesma cadeira onde a carta foi escrita, durante horas a fio. Finalmente, foi até a parede, pegou aquela foto favorita das duas juntas (de mil anos atrás), pegou os cinco potinhos, a carta. Trancou a porta do apartamento detrás de si e saiu chorando pelo corredor.
Partially based on and inspired in this song from Wilco 😉
Deixe um comentário