Era para ser uma oração – subir junto com o incenso. Talvez possa ser isso também, mas antes de dizer para qualquer pessoa – mesmo que seja alguém que já saiba, mesmo que seja Deus – preciso dizer para mim mesma, porque o caos faz com que eu confunda as letras, as palavras, as línguas, os fatos, as lembranças, as ordens e os significados.
Os anjos, os cupidos, os palhaços (mortos), os enforcados, os torturados de olhos esbugalhados, os cínicos segurando cigarros, os velhos, e os casais de sintonia triste, todos eles parecem símbolos, parecem fazer parte de uma única pintura imensa e cheia de detalhes, um afresco bizarro pintado à ouro, cheio de nudez e cobras e asas e mensagens – tudo preso numa tela que tem três vezes o meu tamanho e para a qual eu preciso olhar fazendo minha cabeça girar nos cento e oitenta graus possíveis. Minha história – a que eu conheço e a que eu imagino – parece estar nesse quadro. Muito provavelmente não toda ela… (porque ainda não decidimos como ou quando ela vai acabar) mas grande parte está ali e eu fico olhando, tentando decifrar algo: um sentido para tudo o que não tem sentido, um motivo para toda cicatriz, um porta de fresta entre-aberta que talvez seja nova para amanhã.
O tempo não pára para o meu vislumbre; o tempo passa rápido demais, e eu não tenho tempo, eu tenho pressa. Só que esse amontoado de lembranças e passado estampado na minha frente me hipnotiza e eu não consigo escolher me desprender; a maior parte dessa coisa sem forma nem nome (que muito porcamente, de um jeito genérico chamo de passado) parece com defuntos, vestígios de naufrágios, com carniça que boia no mar. Não vai a lugar algum. E eu, apesar da minha angustiante pressa, estou presa, parada aqui olhando para esta cena indescritível. (Acho graça em mim mesma e em como o tragicômico parece ter conseguido se impregnar na minha pele. Acho graça no meu humor idiota que te conta de dores e mortes, e de repente se percebe num meio sorriso porque acha irônico e bonita a semelhança e a discrepância entre “pressa” e “presa”. A preciosidade que é a língua portuguesa… um dos únicos tesouros que levarei dessa terra maldita!)
Pois bem, a visão é grande demais. Eu sento (no chão, olhos na parede). Me dou conta de que estou no museu. Não no meu, em outro; estamos lá, eu, você e a pintura medonha. E chove. Não é a coisa mais esquisita do mundo? Chove dentro do museu. Eu me dou conta que estou chorando; e só percebi porque as lágrimas e a chuva tem temperaturas e gostos diferentes. E só depois de perceber o museu e a chuva e as lágrimas é que eu percebi você (que já estava lá). Você segura minha mão, minha cabeça pende no seu ombro, desistente de tentar entender o quadro… outro dia tentaremos de novo. Podemos voltar? Claro, você responde. Você vem comigo?, eu pergunto. Claro que sim.
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