the love revolution

Junho de 2013. O Brasil está uma bagunça; a revolução das ruas, a revolução de um povo faminto, sedento, perdido; a revolução que parece um monstro cego tentando defender-se e atacar, infligindo golpes à toda as direções possíveis.

Nícolas, perdido mas com o coração em chamas como todos os outros, era parte da revolução. Estava lá de pé, sob a chuva e contra o vento. A garganta aos berros, doía. Os braços, erguidos como mastros que têm em suas velas as palavras de indignação e reivindicação, doíam. Os pés, depois de quilômetros, doíam. Nada disso parecia importar.

Depois de chegar ao Palácio Iguaçu e assistir aquele capítulo da revolução dissolver-se em fumaça, bandanas e cartazes, entendeu que era hora de voltar para casa (para continuar nos dias seguintes). Atravessou a noite âmbar e gélida fazendo o percurso inverso da passeata como um estranho déjà-vu até chegar de volta ao seu escritório e pegar a bicicleta que tinha deixado lá. Agnes – péssimo nome que ele escolheu para bicicleta.

Pedalou rapidamente e, vez por outra, com uma das mãos, tirava o cantil do bolso interno da jaqueta e bebericava cachaça, feliz. O frio era tanto que não dava conta de sorrir mas, contentava-se em sentir o sangue quente nas canelas que esforçavam-se cada vez mais para chegar em casa e a faringe que queimava com a cachaça gostosa. 

Duas quadras antes de chegar, viu uma garota gesticulando, tentando falar com uma senhora gordinha que andava rápido de braço dado a uma criança bem pequena  – elas não pararam. “Me assaltaram, meu. Foi agora! Que caralho! Meu deus o que é que vou fazer? Ai, que raiva! Filho da puta! Ele veio dali e disse que ‘tava com uma arma embaixo da blusa… que raiva! Eu ainda ‘to pagando a porra do celular, meu! E levou todo o meu dinheiro, meu! Cacete! Nem pra porra do ônibus…” e começou a chorar. Nícolas nunca foi bom em consolar pessoas. Ficou olhando para ela com o coração apertado, compadecido, mas, tudo o que conseguiu dizer foi “Quer ligar para alguém?” enquanto estendia seu aparelho detonado para ela. Elena.  

Ela levantou os olhos, desculpou-se, pegou o celular e falou rapidamente com alguém, pedindo para buscá-la. Enquanto ela falava com quem-quer-que-fosse, ele começou a reparar naquela figura aflita. Os olhos quase escondidos sob franjas longas, muitíssimo retas e finas, tinham um brilho intenso; eram verdes, bem escuros. Tinha sardas no nariz e nas bochechas, bem pouquinho. Parecia que tinham-lhe salpicado cor como se salpica purpurina num cartaz da turminha do jardim de infância. Nada chamou mais a sua atenção do que o cabelo dela: longo, ruivo-laranja, desenrolava-se numa trança. Apesar daquela situação toda, ele estava encantado com a maneira com que ela falava; tinha ares de aventura e parecia estar toda alinhada por linhas invisíveis de tão perfeitamente esguia que era.

the love revolution

Poucos minutos depois ela desligou, agradeceu, desculpou-se de novo – disse que estava super nervosa. Nícolas logo ofereceu que ela aguardasse a tal pessoa na sua casa, “é logo ali” ele disse. Elena recusou de imediato, já tinha vivido perigo demais para uma noite. Ele insistiu em esperar com ela, proposta que foi recebida de bom grado. Elena não queria arriscar-se mas, a verdade é que sentia-se fragilizada, não queria ficar sozinha naquele frio e, ele não parecia nem um pouco amedrontador. Bebericou da cachaça que ele ofereceu; ficaram em silêncio a maior parte do tempo. Ela estava irritada demais para conversar sobre qualquer coisa; ele achou que seria indelicado puxar assuntos aleatórios. Ele queria saber dela – tudo, tudo sobre ela – mas, não tinha muito jeito para conversar assim numa situação tão espinhosa. Dez minutos depois ela entrava num carro branco que mal parou. Ele ficou lá, parado, até que o carro sumiu rua abaixo.


Dois dias depois, o telefone toca: é ela, Elena! “Como conseguiu meu número?”, ele perguntou sentindo o coração bater rápido e as sílabas se atrapalharem todas na língua. Ela explicou que tinha ficado gravado no celular da mãe, para quem ela ligou naquela noite. Ele se sentiu idiota por ter perguntado. Era óbvio! E mesmo que não fosse… o que importava? Ela perguntou se ele iria na passeata daquela noite, disse que seria ótimo se eles pudessem ir juntos.


Nícolas e Elena estavam lá na sétima manifestação. Contra o governo, a corrupção, o desvio do dinheiro da Copa, a falta de Educação, a lamentável situação do SUS…

“O povo / unido / é gente pra caralho”
“Vem / pra / rua”
“Da Copa / da Copa / da Copa eu abro mão / eu quero saúde / transporte / educação”

Gritavam, gritavam, gritavam. Caminhavam ao lado de velhos, jovens, mascarados, gente com a cara pintada de verde e amarelo, algumas crianças; tinha até um cara cuspindo fogo e um casal vestido de palhaço. Caminhavam por entre cartazes e faixas, luzes e bandeiras, neblina e emoção. Caminhavam de mãos dadas.

Ilustração: http://www.adrienpatout.com/

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