Sempre tive meus momentos de impetuosidade e,este foi um destes: mandei a mensagem dizendo que gostava do trabalho dele, que estava morando na França e que ficaria feliz em lhe pagar um café para conversarmos um pouco, quando ele pudesse. Fui respondida em questão de minutos e combinamos para o dia seguinte nosso encontro. Eu sabia que esse é o tipo de atitude que está sujeita ao julgamento machista e simplista, que eu corria o risco de ser mal interpretada, de ele achar que eu estava dando mole… Não era isso. E eu queria acreditar que lá, numa sociedade mais questionadora e igualitária, haveria gente evoluída o suficiente pra me interpretar sem “maldade”, essa maldade que diz que tudo é sexual.
Às 15h ele estava na gare, fumando, me esperando. Atrasei pouca coisa, uns 15 minutos. Quase em frente à estação, paramos num café. Bonjour, deux cafés, s’il vous plaît. Contei pra ele porque eu estava na França, ele me contou como começou a pintar; eu contei como estava sendo a adaptação e o perrengue de aprender a língua; ele me contou, com os olhos brilhando, do filhinho de cinco anos que morava com a mãe. A coisa corria bem e eu já havia abandonado a postura defensiva. Estava feliz, aproveitando. Ele perguntou se eu gostaria de conhecer a casa dele que funcionava também como atelier. Engatou que os amigos e amigas que moram com ele estariam lá também. Ponderei um segundo, aceitei.
Do café à casa dele fomos caminhando devagar e conversando. Eu estava feliz porque ele não estava me paquerando e parecia ter entendido que eu não estava paquerando ele também. Falei da minha relação com a Arte e acho que isso teve peso no julgamento dele sobre mim, como se corroborasse com a verdade que eu apresentei. Dez minutos de caminhada e chegamos.
Não conseguia parar de pensar que o sonho de Van Gogh realizou-se ali: duas casas conjugadas, ateliers e ambientes partilhados, entrelaçando-se; um jardim convidativo. Quatro artistas viviam ali – dois deles com esposas, um deles com uma filha. O lugar era lindo apesar da bagunça, cheio de estilo. Tintas por todos os lados, desenhos e pinturas pelas paredes – pendurados ou apoiados no chão. Na vitrola um vinil de Nina Simone. Enquanto eu era apresentada às pessoas e à casa, bebericava um vinho que me ofereceram logo na chegada. Era quase irreal…
Já havia conhecido todo o primeiro andar, hora de subir. Na quina de uma das salas, uma escada caracol de metal pintada de vinho. Nos degraus, livros. No corrimão, um par de algemas.
PERAÍ. Algemas? AL-GE-MAS?! You must be killing me. OU, pior, quer matar mesmo. OU, pior… Vai saber que fetiche que esse francês maluco tem. Numa fração de segundos, toda minha admiração por ele transformou-se em sorriso amarelo, suor frio e arrepios. PUTA MERDA, como assim um par de algemas penduradas aqui? Se esse cara me prende aqui, nunca vão me achar! Meus amigos acham que estou em Paris… Não achei necessário dar detalhes já que nada desse rolê artsy interessa a eles. Banlieue de Paris, trem, todo esse trampo pra conhecer um artista que não tem obra pendurada no Louvre? Nem adiantava tentar explicar. Agora, na verdade, já estou convencida de que eu deveria ter explicado, sim. Devia ter passado o endereço, sei lá. Cacete. E é uma algema de verdade! Qual a explicação para uma pessoa ter uma algema em casa? Eu só consigo pensar em duas: foi preso ou quer prender alguém. Que merda. Ao fim da escada ainda não tive nenhuma ideia brilhante de como sair de lá e, estamos numa parte mais privada da casa: o quarto.
Ele sinaliza uma cadeira para que eu me sente. Não queria que ele percebesse minha desconfiança e desconforto – talvez o elemento surpresa fosse minha única carta na manga – então, sentei. Ele agachou-se em frente a um móvel grande e começou a tirar de lá vários desenhos. Comecei a varrer com os olhos o ambiente procurando qualquer coisa que eu pudesse usar para me defender. Nada, nada, nada. Fuck. Ele trouxe os desenhos e sentou na ponta da cama.
[To be continued].
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